"Absinto" é uma bebida destilada feito da erva Artemisia absinthium. Anis, funcho e por vezes outras ervas compõem a bebida. Ela foi criada e utilizada primeiramente como remédio pelo Dr. Pierre Ordinaire, médico francês que vivia em Couvet na Suíça por volta de 1792.É também conhecido popularmente de fada verde em virtude de um suposto efeito alucinógeno. Absinto, o blog, é um espaço para delírios pessoais e coletivos. Absinte-se e boa leitura.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O tatu



Contar histórias é um dom que um dia eu espero alcançar.

Meu tio contava histórias muito bem. Sabia valorizar cada cena, cada pausa para tirar de nós o mais profundo suspiro de agonia do que viria depois.
Certo dia ele chegou tarde à casa de minha avó, com um saco de mandioca nas costas e outro com um bicho amarrado. Ficamos todos curiosos para saber o que estaria ali dentro. Seria um leitão? Um gato do mato? Era um tatu. Um tatu-canastra, hoje em risco de extinção. Um tatu bravo que meu tio foi contando como achou.

- Eu estava vindo para cá com a caminhonete e parei no meio da estrada para descansar um pouco, beber um pouco d´água antes de seguir viagem. Em dias quentes, viajar em chão de terra parece que acalora mais a gente. 

Quando pus a ligar o carro, ouvi um gemido estranho. Pois o tatu havia entrado debaixo da caminhonete e, sabe lá como, ficado preso no fundo. Até agora estou sem entender como o bicho foi parar lá. O fato é que o peguei no colo e coloquei-o na beirada do caminho e já ia pegando o volante, quando vi o tatuzinho indo para o meio da estrada, se colocando entre mim e a passagem a seguir. Pensei comigo, este danado tá querendo a morte. 

Desliguei o motor, desci novamente e tentei espantar o bicho para o canto. Mas ele ficou ali como mula empacada. Peguei-o no colo e coloquei-o no meio do milharal que crescia na margem da estrada. Subi e virei a chave. Não andei nem meio metro e sai o tatu do meio dos pés de milho mais adiante. Vinha correndo com suas patas curtas para parar justo na curva de chão batido. 

Já comecei a pensar em alma penada. Fiz o nome do pai e desci meio desconfiado. Procurei pelos lados para ver se não enxergava alma deste ou de outro mundo. Apenas um vento fraco fazia as folhas de milho balançarem, formando um som que até me agradava, mas que naquele instante começava a me dar arrepios.

Olhei o tatu nos olhos. O bicho parado. Desviou o olhar, depois, lentamente mexeu o rabinho e mais nada. Deu pena e mais uma vez peguei-o no colo e, desta vez, coloquei-o na beirada da estrada na direção contrária a que eu seguia. Subi e fiquei procurando o bicho pelo retrovisor, mas que bobagem a minha. De tão pequeno, não poderia mesmo enxergá-lo.

Liguei o motor e pisei levemente no acelerador. Fui observando para ver se via o bicho na estrada à medida que tomava distância. Em vão. Desapareceu como havia aparecido.

Neste instante meu tio parava de contar o causo e saboreava demoradamente o café que minha avó havia lhe servido. Na verdade, ele saboreava observar nossos olhares atentos ávidos para saber o que havia acontecido com o pequeno tatu. Foi quando minha avó disse:

- Continua Olímpio, que você vai matar essa meninada de tanta curiosidade.

- Pois então, minha mãe. Andei 200 km de estrada de chão até pegar a estrada principal. (Nova pausa para o café). E quando, enfim, encontrei um posto para abastecer, foi que percebi que da boleia havia caído um pedaço de saco de linho, onde o danado do tatu cravou as unhas e seguiu viagem de carona. Ele veio surfando de um lado para o outro e eu nem percebi a toada deste maroto. Agora está aí.

- E o que você vai fazer com ele, meu tio? Perguntei, ansiosa, já sonhando em levá-lo comigo para o apartamento da Tijuca quando as férias de verão acabassem. 

- Vou comer, ora essa!

Fiquei horrorizada. Como teria coragem de comê-lo depois de tudo o que passaram juntos?

- É que ele não olhou nos meus olhos, respondeu meu tio que a estas horas já me encarava no fundo da minha íris, com o corpo arqueado e os braços apoiados nos joelho. Um olhar que pedia reverência e respeito aos mais velhos.

Baixei meu olhar e sai calada sem saber o que fazer.

De repente, todos da família e os vizinhos haviam sido avisados que ia ter tatu assado no dia seguinte.

Pois o fato é que quando meu tio foi tirar o bichinho do saco, ele o encarou de perto, parecendo que havia escutado toda a história, olhou fundo nos olhos do meu tio, que não pode mais fazer guisado. 

O tatu-canastra viveu solto na casa de minha avó por muitos anos, se enroscando entre os pés de goiaba e a horta de ora-prono-bis. Um belo dia, como veio se foi, sem deixar rastro. No mesmo dia em que meu tio faleceu. 

7 comentários:

  1. Não sabes contar um conto, uma história?

    Não precisa esperar o dom.
    Ele chegou.
    Parecias meu avô...

    (nem imaginas a dimensão do elogio que te acabei de dar)

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  2. Vindo de vc, meu amigo. Já é um grande elogio para mim. Com esta deferência do seu avô, então, nem se fala. Obrigada!

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  3. Malu, querida, voce já tem o dom que aspira. Ótimo conto. Ótima contação. BJ

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  4. Malu querida
    Excelente forma a tua de contar a história! Adorei, não existem Tatus deste lado,(penso eu) nunca ouvi falar.
    Fizeste-me lembrar quando minha filhota era pequenina tive um senhor de quem gostavamos muito ofereceu-me um casal de piriquitos, tive-os durante cinco anos, mas morreram após três dias do senhor falecer.

    Beijinho e uma flor

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  5. Eita tatu gostoso de se ler! Gosto de causo assim ! Bom de ver! Bom de Ler! Com jeito verdade de ser!

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  6. Essa história foi otima!!!!!
    Quando eu era menino a gente costumava dar nomes as galinhas e isso as salvava das panela.Minha mãe dizia que bicho com nome não se mata......rsrsrs
    Imagine então se elas dessem um olhar "olhos nos olhos".
    Gostei do final...dramatico e misterioso, dando o que pensar.

    bjo procê

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  7. Você quer virar contadora de estórias? Vai fazer sucesso !

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